MAIOR ACESSO À JUSTIÇA NÃO É CAUSA DA MOROSIDADE, AFIRMAM JURISTAS
Por Thiago Crepaldi e Fernanda Valente
1 de março de 2019, 10h29
A ampliação do acesso à Justiça promovida por importantes leis do país não é a causa da morosidade do Poder Judiciário. A opinião é de juristas que se reuniram no último dia 22, na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, para o seminário “Acesso à ordem jurídica justa”.
“A morosidade tem uma série de causas, mas está longe de ser o acesso da população à Justiça”, refuta Paulo Eduardo Alves da Silva, professor do curso de Direito da USP de Ribeirão Preto. Silva disse que o acesso à Justiça esteve sempre ligado à ideia de desigualdade, e o Direito deve ser pensado como mecanismo para neutralizar esse desequilíbrio na sociedade
“A leitura que se faz atualmente esquece do conceito original. Pensamos em volume de processos da perspectiva do gabinete, mas, da perspectiva da população, ela não se sente com tanto acesso à Justiça. Os litígios no Brasil envolvem grandes empresas contra pequenos indivíduos. É importante saber quem usa o Judiciário para sabermos se de fato existe acesso à Justiça antes de imputar o acesso à Justiça como causa da morosidade”, ponderou.
Para a cientista política e pesquisadora Maria Tereza Sadek, ter mais e mais juízes não mudaria a morosidade do Judiciário. E deu dados para corroborar sua fala: de 2004 a 2019, o número de processos que continuam não resolvidos permanece em 70%.
“Temos de trabalhar a mentalidade de todos, do promotor, do juiz, do defensor, da sociedade brasileira. Temos 100 milhões de processos. Não é possível que exista tanta litigância. Mas quem é que vai mais à Justiça? É a população? Podemos falar de acesso à Justiça? De universalização desses direitos? Não podemos”, respondeu.
Maria Tereza lembrou que, dos 100 milhões de processos, há uma enormidade de ações movidas ou provocadas pelo poder público. “Governos estaduais, o INSS e demais autarquias têm amplo acesso à Justiça, mas a população, não”, criticou a pesquisadora.
Meios alternativos
A juíza de Direito no Espírito Santo Trícia Navarro falou sobre sua experiência com métodos alternativos de solução de conflitos. Titular de uma vara cível, ela disse que a insistência nos meios alternativos deu mais produtividade no trabalho. “Desde a vigência do CPC, instituí a audiência do artigo 334 em todos os processos. Tive um aumento de 600% do número de acordos, comparando um ano antes do CPC e um ano depois do CPC.”
Ela vê inúmeras vantagens, como o diálogo entre as partes, saindo das audiências com outra visão do conflito. “Os advogados estão pedindo a conciliação em outros momentos do processo e até mesmo em ritos especiais. Em até seis meses já estou tendo processos conclusos para sentença, dependendo do caso”, contou.
“Quando a pessoa diz: ‘eu quero minimizar custos, privacidade e ter a chance de manter o relacionamento’, aí recomenda-se a adoção de meios consensuais, que vão evitar o ganhar e o perder”, disse a advogada e professora Fernanda Tartuce.
O advogado, professor e pesquisador Marco Lorencini afirmou que “temos de desconstruir a ideia de que só uma sentença judicial pode acabar com um conflito”. “O novo CPC privilegia soluções negociadas.”
Questão cultural
O ministro Luis Felipe Salomão, do Superior Tribunal de Justiça, contou que a magistratura sempre foi resistente à ideia de negociação entre as partes. Quando era juiz, contou, recebeu a coordenação dos juizados de pequenas causas “porque ninguém a queria”. Seguiu a sugestão de fazer audiências à noite, em horários alternativos para que não prejudicasse as partes e ampliar o acesso. “Foi um sucesso. Fizemos mutirões, os juizados explodiram.”
Segundo Salomão, passou a haver uma mesma concepção de mundo, de ampliar o acesso, de facilitar a resolução do litígio, de encontrar caminhos alternativos.
Acordo e gerenciamento de casos
O juiz de Direito em São Paulo Marcus Onodera, que estudou o gerenciamento do processo brasileiro e norte-americano, contou que os Estados Unidos enfrentavam um número de processos muito grande, com uma Justiça muito lenta e muito cara.
“Até a década de 1980, nos Estados Unidos o processo era lento e caro e eles entenderam que era necessário dar ao juiz um papel mais ativo na condução dos casos, poder de gerenciamento. Com a reforma, o juiz passou a dispor de várias medidas para gerir o caso e levar a uma solução adequada”, contou.
E, segundo Onodera, isso gerou resultado. “Hoje nos EUA, mais de 90% dos casos são resolvidos principalmente por acordo, 5% vão a julgamento. No Brasil é quase o contrário, somente 10% terminam em acordo e 90% acabam sendo julgados.”
Para o magistrado, embora sejam sistemas distintos, os problemas dos países estão cada vez mais parecidos. “O foco é acesso à Justiça. O juiz americano é muito prático na forma de chamar as partes, sem violar o dever de imparcialidade. Mas o juiz precisa ter experiência para saber como conduzir o caso. Uma medição ou conciliação muitas vezes será muito melhor do que uma sentença judicada. Utilizar o processo como instrumento para solucionar o caso de forma rápida, menos custosa e mais justa. Não dá mais pra falar que a mediação é uma porta dos fundos”, concluiu.
Fechando os trabalhos, o ministro Dias Toffoli, presidente do Supremo Tribunal Federal e ex-aluno do Largo São Francisco, disse que uma das principais causas da equivocada cultura do conflito reside na própria formação do profissional do Direito, pois eram raríssimas as faculdades que ofertavam, na graduação, disciplinas obrigatórias voltadas aos métodos não contenciosos de solução dos conflitos.
O ministro contou que o CNJ se orgulha de ter conseguido executar o projeto: em dezembro de 2018, o Conselho Nacional de Educação estabeleceu que a partir deste ano, serão obrigatórios os cursos de mediação, conciliação e arbitragem.
"O aprendizado de que uma sentença, um acórdão, mesmo transitada em julgado, não significa o fim do conflito social. Antes da jurisdição, outros meios de solução são melhores e mais eficientes para alcançar a pacificação social", disse Toffoli.
Organizado pelo Instituto Brasileiro de Direito Processual e o Centro Brasileiro de Estudos e Pesquisas Judiciais, o seminário prestou homenagem ao advogado Kazuo Watanabe. Desembargador aposentado do Tribunal de Justiça de São Paulo, Watanabe é professor histórico do Largo São Francisco e um dos principais responsáveis por projetos importantes de acesso à Justiça, como a Lei dos Juizados Especiais, o Código de Defesa do Consumidor e as resoluções sobre mediação e conciliação do Conselho Nacional de Justiça.
Thiago Crepaldi é repórter da revista Consultor Jurídico.
Fernanda Valente é repórter da revista Consultor Jurídico
Fonte: Revista Consultor Jurídico, 1 de março de 2019, 10h29