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A DESJUDICIALIZAÇÃO DAS DESAPROPRIAÇÕES

20 de abril de 2020, 15h06

Por Talden Farias, Leon Delácio de Oliveira e Silva e Caio Felipe Caminha de Albuquerque

 

É cediço que o poder público poderá expropriar bens privados (ou mesmo públicos) com fulcro no princípio da Supremacia do Interesse Público sobre o Privado, desde que respeitando a justa e prévia indenização em dinheiro (CF/88, artigo 5º, XXIV). Cuida-se, evidentemente, de uma modalidade extremamente gravosa de intervenção do Estado na propriedade privada. Essa forma de aquisição originária da propriedade independe da concordância do proprietário e é fundamental para permitir que a Administração Pública exerça o seu mister, garantindo a execução de projetos e de políticas públicas.

 

A desapropriação pode ser realizada pela via administrativa ou judicial. Todavia, na prática são pouquíssimos os casos solucionados na via administrativa, em virtude da grande diferença de preço entre o valor ofertado pelo expropriante e o desejo do expropriado. Os laudos oficiais, que levam em consideração diversos parâmetros (estudos geológicos, restrições ambientais, benfeitorias, infraestrutura urbanística, etc), muitas vezes contradizem os próprios valores de tributos que têm bases de cálculo relacionadas ao valor do bem (IPTU e ITBI, por exemplo).

 

Não se pretende, é claro, questionar a importância do instituto da desapropriação, nem se criticar os laudos oficiais, até porque essa seria uma discussão técnica e o enfoque do texto é jurídico. O que se traz para reflexão é que, na via administrativa, os valores, em regra, são bem inferiores aos praticados no mercado, o que dificulta sobremaneira a composição extrajudicial. E, pior, na via judicial, os valores finais nas ações de desapropriação são extremamente desvantajosos para o Poder Público, pois, além do valor original da condenação incide normalmente correção monetária, juros de mora, juros compensatórios e honorários advocatícios.

 

Constata-se, na prática, a ineficácia da via administrativa, o abarrotamento do Judiciário com o incentivo à cultura do litígio e o sentimento de injustiça de ambas as partes, sobretudo pela demora da prestação jurisdicional e pelo pagamento por meio de precatórios. Há de se destacar também o agravamento do orçamento público, uma vez que os valores pagos ao final são extremamente superiores ao valor original (isso considerando o valor estabelecido em sentença, com base no laudo do perito oficial, somado a correção monetária, juros de mora, juros compensatórios e honorários advocatícios). Ao se falar de déficit nas contas públicas, a mídia se volta apenas para o custeio de pessoal, quando, na verdade, situações como essa geram um impacto financeiro negativo enorme.

 

A Administração Pública acaba produzindo uma "bolha orçamentária", que deixará grandes dificuldades para o seu adimplemento futuro, pois existe a ideia equivocada, amparada pela legislação, de que é fácil conseguir a liminar de imissão na posse, iniciar as obras e depois "deixar para o próximo gestor pagar a conta". Mas essa conta pertence a todos! Essa cultura de empurrar o problema para a frente tem consequências desastrosas para o erário, comprometendo o orçamento além do necessário, pois são situações que poderiam e deveriam ser resolvidas na via administrativa, sem deixar tal passivo financeiro. Há de se mudar essa cultura.

 

Casos concretos demonstram que uma desapropriação chega a custar, ao final, na via judicial, mais de dez vezes o valor inicialmente estimado. Ou seja, esse cálculo poderia, inclusive, até mesmo comprometer a execução da própria obra pública em questão, tendo em vista que, por mais que se tenha interesse coletivo, o seu custo passaria a ser tão alto que a inviabilizaria. Por outro lado, para um planejamento fiscal adequado e efetivo, faz-se necessário saber o custo real da obra até a finalização do seu pagamento.

 

Em vista disso, cabe ao Poder Público incentivar a realização de acordos, na via extrajudicial, das desapropriações, porque assim ele saberá o custo real da sua obra e o proprietário receberá sua indenização, além de justa, em tempo razoável. Nesse sentido, mostra-se louvável o advento da Lei 13.867/19, que alterou o Decreto-Lei 3.365/41, o qual dispõe sobre as desapropriações por utilidade pública, buscando incentivar a realização de acordos na via administrativa, por meio da padronização de procedimentos e permitindo a utilização da mediação e arbitragem.

 

Impende dizer que a resolução negociada de conflitos é uma máxima do Novo Código de Processo Civil (artigo 3º), dizendo respeito também à atuação extrajudicial do Ministério Público e da Defensoria Pública, que têm feito uso do TAC (artigo 5º, § 6º, Lei 7.347/85) e de outras soluções consensuais. É tendência que, obviamente, envolve também o Poder Executivo, cabendo destacar que instrumentos de substituição de conflitos se fazem presentes também nas seguintes normas: Decreto-Lei 4.657/42 (Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, após as modificações trazidas pela Lei 13.655/2018), Lei 12.529/2011 (Lei do Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência), Lei 6.385/1976 (Lei do Mercado e da Comissão de Valores Mobiliários), Lei 9.605/98 (Lei dos Crimes e das Infrações Administrativas Ambientais) e Leis 9.656/1998 e 9.961/2000 (Lei dos Planos e Seguros Privados de Assistência à Saúde e Lei da Agência Nacional de Saúde Suplementar — ANS). É evidente que o instituto da desapropriação, pela sua relevância jurídica e política, não poderia fugir dessa ideia de conciliação no Direito Administrativo.

 

Inicialmente, cabe registrar que, apesar de a redação do artigo 10-A do Decreto-Lei 3.365/41 (acrescentado pela citada lei) afirmar que "deverá" haver a notificação, isso não deve ser entendido como uma obrigação da Fazenda Pública, pois o artigo 5º, XXXV, da CF/88 consagra o princípio da inafastabilidade da jurisdição, que é plenamente aplicável à Fazenda Pública e, também, poderá haver situações emergenciais que ensejem a necessidade da via judicial para imissão célere na posse. Todavia, mesmo entendendo a não obrigatoriedade, por razões de economia e responsabilidade fiscal, cabe à Administração Pública incentivar, ao máximo, a tentativa de acordo na via administrativa, inclusive utilizando os mecanismos da conciliação, mediação e arbitragem.

 

O artigo 10-A regulamenta a utilização da via administrativa na fase executória da desapropriação, algo que é muito útil para padronizar esse procedimento. De acordo com o caput do dispositivo, o poder público "deverá" notificar o proprietário e apresentar-lhe oferta de indenização, o que abre a fase administrativa do procedimento expropriatório. Uma vez notificado, o proprietário do bem expropriado terá o prazo de 15 dias para aceitar ou rejeitar a oferta, sendo presumida a rejeição em caso de silêncio, nos termos do artigo 10-A, §1º, IV. Caso a proposta seja aceita, será realizado o pagamento e o acordo poderá ser utilizado para a transcrição no registro de imóveis, pondo fim ao procedimento expropriatório (artigo 10-A, § 2º, do Decreto-Lei 3.365/41). Por outro lado, na hipótese de rejeição, restará ao poder público a possibilidade de utilização do procedimento judicial de desapropriação (artigo 10-A, § 3º, do Decreto-Lei 3.365/41).

 

Outra inovação de grande relevância trazida pela Lei 13.867/19 é a possibilidade de opção pela mediação ou pela via arbitral para a definição dos valores de indenização, que decorre da inclusão do artigo 10-B do Decreto-Lei 3.365/41. Isso ocorrerá quando o proprietário do bem expropriado, dentro do prazo de 15 dias de que dispõe para aceitar ou rejeitar a oferta extrajudicial de indenização (artigo 10-A, §1º, IV, do Decreto-Lei nº 3.365/41), não concorde com o valor ofertado, mas também não pretenda rejeitar a via extrajudicial para solucionar a questão.

 

Feita a opção pela mediação ou pela arbitragem, o particular indicará um dos órgãos ou instituições especializados habilitados para tanto e previamente cadastrados pelo órgão responsável pela desapropriação, conforme prevê o caput do artigo 10-B do Decreto-Lei 3.365/41. Também poderá ser eleita câmara de mediação criada pelo Poder Público, nos termos do artigo 32 da Lei 13.140/2015, a qual dispõe sobre a mediação entre particulares como meio de solução de controvérsias e sobre a autocomposição de conflitos no âmbito da Administração Pública. A arbitragem é uma forma extrajudicial de solução dos conflitos, regida pela Lei 9.307/96. Por meio desse procedimento, as partes elegem um terceiro imparcial, que não integra o Poder Judiciário, para solucionar a controvérsia substituindo a vontade dos litigantes.

 

O objeto da arbitragem deve abarcar direitos patrimoniais disponíveis e esse instrumento deve ser utilizado por pessoas capazes, nos termos do artigo 1º da Lei 9.307/96. Com as alterações promovidas pela Lei 13.129/15, a Lei 9.307/96 passou a permitir expressamente a utilização da arbitragem também pela Administração Pública Direta e Indireta para dirimir conflitos relativos a direitos patrimoniais disponíveis. Antes mesmo do advento da Lei 13.129/15, parte da doutrina já entendia ser cabível a arbitragem envolvendo a Fazenda Pública. Inclusive, o artigo 23-A da Lei 8.987/95 (Lei de Concessões e Permissões) aponta a arbitragem como método de resolução de disputas relativas ao contrato de concessão de serviço público. Conforme leciona José dos Santos Carvalho Filho [1] (2017, p. 558), os direitos da Administração Pública que podem ser objeto da arbitragem são aqueles em que seja predominante o aspecto da patrimonialidade e passíveis de disponibilização, de modo que ficam excluídos os direitos sociais, inclusive os metaindividuais, sobre os quais prepondera o interesse público.

 

A arbitragem utilizada pelos particulares pode ser de direito ou de equidade, nos termos do art. 2º da Lei 9.307/96. Entretanto, a arbitragem que envolva a Administração Pública será sempre de direito e respeitará o princípio da publicidade. Portanto, a equidade não pode servir de fundamento para a resolução arbitral dos conflitos envolvendo os entes públicos. Isso decorre do princípio da legalidade ao qual se submete da Administração Pública (CF/88, art. 37, caput). Ademais, de acordo com o art. 1º, §2º, da Lei nº 9.307/96, a autoridade ou o órgão competente da Administração Pública Direta para a celebração de convenção de arbitragem é a mesma para a realização de acordos ou transações.

 

A mediação é regida pela Lei 13.140/2015, cujo artigo 1º, parágrafo único, define-a como "a atividade técnica exercida por terceiro imparcial sem poder decisório, que, escolhido ou aceito pelas partes, as auxilia e estimula a identificar ou desenvolver soluções consensuais para a controvérsia". O artigo 165, §3º, do CPC também trata da mediação e afirma que o mediador atuará preferencialmente nos casos em que houver vínculo anterior entre as partes e auxiliará aos interessados a compreender as questões e os interesses em conflito, de modo que eles possam, pelo restabelecimento da comunicação, identificar, por si próprios, soluções consensuais que gerem benefícios mútuos.

 

Dessa forma, a mediação é um método alternativo de solução dos conflitos que atua por meio do incentivo à autocomposição. Não há, nesse caso, uma substituição das vontades das partes pelo terceiro imparcial. As partes é que devem querer solucionar o conflito. Esse procedimento pode ter como objeto o conflito que verse sobre direitos disponíveis ou sobre direitos indisponíveis que admitam transação, podendo abranger todo o conflito ou apenas parte dele (artigo 3º da Lei 13.140/2015). Vale ressaltar que, caso o consenso entre as partes da mediação envolva direitos indisponíveis, mas transigíveis, deverá ser homologado em juízo, exigida a oitiva do Ministério Público (artigo 3º, §1º, da Lei 13.140/15).

 

A Lei 13.140/15 é aplicável à mediação como meio de solução de controvérsias entre particulares e à autocomposição de conflitos no âmbito da administração pública, nos termos do seu artigo 1º. A autocomposição no âmbito da administração pública está prevista nos artigos 32 a 40 da Lei 13.140/15 e é feita por meio de câmaras de prevenção e resolução administrativa de conflitos criadas pela União, pelos estados, pelo Distrito Federal e pelos municípios, no âmbito dos respectivos órgãos da Advocacia Pública, onde houver. Caso elas não existam, os conflitos poderão ser dirimidos nos termos do procedimento de mediação aplicável aos particulares e previsto na Subseção I da Seção III do Capítulo I da Lei 13.140/15.

 

As câmaras terão competência para: I) dirimir conflitos entre órgãos e entidades da administração pública; II) avaliar a admissibilidade dos pedidos de resolução de conflitos, por meio de composição, no caso de controvérsia entre particular e pessoa jurídica de direito público; e III) promover, quando couber, a celebração de termo de ajustamento de conduta. Também estão compreendidas nessa competência a prevenção e a resolução de conflitos que envolvam equilíbrio econômico-financeiro de contratos celebrados pela administração com particulares. É importante ressaltar que a submissão de um conflito às câmaras de prevenção e resolução administrativa de conflitos é facultativa e será cabível apenas nos casos previstos no regulamento do respectivo ente federado. Além disso, o artigo 33, parágrafo único, da Lei 13.140/15 prevê que a Advocacia Pública da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios, onde houver, poderá instaurar, de ofício ou mediante provocação, procedimento de mediação coletiva de conflitos relacionados à prestação de serviços públicos.

 

Cabe ressaltar que a composição extrajudicial do conflito não afasta a apuração de responsabilidade do agente público que deu causa à dívida, sempre que se verificar que sua ação ou omissão constitui, em tese, infração disciplinar. Ademais, nas hipóteses em que a matéria objeto do litígio esteja sendo discutida em ação de improbidade administrativa ou sobre ela haja decisão do Tribunal de Contas da União, a conciliação dependerá da anuência expressa do juiz da causa ou do ministro relator.

 

Há alguns exemplos exitosos de experiências desse tipo, como, por exemplo, a Câmara de Conciliação e Arbitragem da Administração Federal (criada pelo Ato Regimental AGU 5, de 27/07) e a Central de Conciliação do Município de Porto Alegre (Lei Municipal 12.003/16). É o caso de ampliarmos essas experiências para as demais Administrações Públicas e, incentivar, ao máximo, conciliação, mediação e arbitragem nos processos de desapropriação, por razões de economia, responsabilidade fiscal e justiça. As várias esferas da Administração Pública devem estimular a criação e regulamentação das Câmaras de Conciliação e Mediação, com parâmetros legais e objetivos, bem como incentivar a utilização da via arbitral para solucionar grande parte das desapropriações.

 

Há de se destacar o papel da Advocacia Pública nesse cenário, procurando viabilizar a solução extrajudicial de conflitos jurídicos. É recomendável a criação de centrais de conciliação no âmbito das procuradorias, com procuradores e assessores dedicados unicamente a isso, a fim de construir a expertise necessária, com o correspondente investimento em capacitação de servidores e em mudança de mentalidade. A desjudicialização da desapropriação vai contribuir para a promoção da justiça no caso concreto, haja vista a maior celeridade, economicidade e informalidade, ajudando a diminuir os problemas orçamentários do país e a desafogar o Poder Judiciário e a própria Administração Pública.

 

Talden Farias é advogado, professor da UFPB e da UFPE e doutor em Direito da Cidade pela UERJ. Autor de "Licenciamento ambiental: aspectos teóricos e práticos" (7. ed. Fórum, 2019).

 

Leon Delácio de Oliveira e Silva é advogado, procurador do município de João Pessoa-PB, professor universitário e mestre em Desenvolvimento Urbano pela UFPE.

 

Caio Felipe Caminha de Albuquerque é advogado, procurador do município de João Pessoa-PB e professor universitário.

 

FONTE: Revista Consultor Jurídico, 20 de abril de 2020, 15h06

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