OS NEGÓCIOS JURÍDICOS CONSTITUÍDOS DURANTE A PANDEMIA PODEM SER INVALIDADOS?
24 de abril de 2020, 9h40
Por Alan Hial Pellizzari e Arthur Mendes Lobo
O fechamento do comércio durante a pandemia do coronavírus tem gerado dificuldades econômicas, colocando muitas pessoas em situação de vulnerabilidade. O cenário, absolutamente inédito, tem sido motivo de diversas rescisões contratuais, renegociações, insolvência, responsabilidade civil por quebra de expectativa, dúvidas quanto à norma jurídica aplicável em determinado caso concreto, enfim, são diversas as questões jurídicas que estão (e continuarão) surgindo. Mas, ao que tudo indica, os acordos são o melhor caminho para solucionar esses conflitos. São mais rápidos e podem ser realizados antes mesmo de a questão ser levada ao Judiciário. Também podem ser firmados nos processos que já tramitam na Justiça.
O que se pergunta neste breve ensaio é: havendo acordo, qual o risco de invalidação futura? Qual a segurança jurídica de uma composição amigável firmada em tempos de Pandemia Covid-19? Que cuidados jurídicos as partes devem ter para evitar (ou pelo menos diminuir) o risco de invalidação dos negócios firmados?
Os juristas Mauro Cappelletti e Bryant Garth afirmam que os processualistas modernos devem utilizar-se de métodos de análise da sociologia, da política, da psicologia e da economia1.
A psicologia e a economia têm inegáveis reflexos sobre os contratos. Basta ver que algumas das modalidades do chamado vício de consentimento consideram situações como “premente necessidade”, “inexperiência” e o “temor de dano iminente e considerável à sua pessoa, à sua família, ou aos seus bens” como possíveis elementos que autorizam anulação ou revisão contratual (arts. 151, 156 e 157, do Código Civil).
Durante a celebração de acordo, é importante fazer constar do instrumento contratual cláusulas e/ou outras garantias que podem afastar (ou pelo menos atenuar) os vícios de consentimento. A título de exemplo, é possível uma declaração expressa, seja no próprio texto do acordo (ou em um documento anexo), de que o negócio jurídico está sendo celebrado por livre e espontânea vontade, sem iminente perigo de dano grave às partes, seus representantes, empregados e/ou familiares.
Outra recomendação importante que também pode minimizar o risco de invalidação é a assinatura de duas testemunhas no acordo celebrado, o que pode reforçar a prova de que o negócio está sendo firmado sem erro, coação ou lesão a qualquer das partes.
Na mesma linha, outro mecanismo legal que pode reforçar a fé-pública e presunção de veracidade de que o acordo é firmado sem defeito de manifestação de vontade parece ser a homologação judicial.
Como se sabe, a homologação judicial é plenamente cabível nos processos que já estão em curso. Mas como se daria a homologação quando as partes chegam à solução amigável antes de propor uma ação judicial?
A resposta está no chamado “procedimento de jurisdição voluntária”, que é uma atividade estatal de integração e fiscalização. Por meio desse procedimento, as partes buscam o Poder judiciário para integração da vontade, para torná-la apta a produzir presunção de validade absoluta à determinada situação jurídica. O Estado-juiz fiscaliza a autonomia da vontade e os requisitos legais para a obtenção do resultado almejado. É por essa razão que o art. 725, inciso VII, do Código de Processo Civil coloca à disposição das partes o procedimento de jurisdição voluntária, prevendo que o mesmo será admitido para a “homologação de autocomposição extrajudicial, de qualquer natureza ou valor”.
Sendo as partes pessoas maiores, capazes, transigindo sobre direito for disponível, não será necessário ouvir o Ministério Público, nem a Fazenda Pública, o que faz com que a tramitação para homologação do acordo seja mais célere. Para se ter uma estimativa, o art. 723 do CPC determina que “o juiz decidirá o pedido no prazo de 10 (dez) dias.”
Outro mecanismo que pode evitar os riscos de invalidação é a mediação. Concordamos com Lucia Mugayar Wambier quando afirma que uma boa negociação, tecnicamente mediada, pode garantir melhorias nas condições de vida social e econômica, já que a solução é pautada no diálogo, na participação e no consenso, dirimindo os riscos de vício de consentimento2.
O Presidente do Superior Tribunal de Justiça, Ministro João Otávio de Noronha, já afirmou que é preciso promover uma mudança de comportamento, uma mudança cultural de incentivo dos meios consensuais de solução das controvérsias, conscientizando-se a todos do papel da mediação como excelente aliada para o alcance da pacificação social3.
Assim, a mediação assume especial relevância no tratamento de conflitos gerados pela Pandemia, já que pode auxiliar na “desestigmatização” do estado de perigo, lesão ou coação, notadamente porque, na construção do consenso, contemplará o envolvimento efetivo e direto das partes.
Em suma, a autocomposição das controvérsias geradas pelo fechamento do comércio, através da figura do mediador ou de um conciliador, a homologação judicial, a assinatura de testemunhas e algumas cláusulas contratuais específicas são alguns, dentre outros, instrumentos que se alinham à segurança jurídica dos contratos.
Cumpre também alertar que, se mesmo diante dos cuidados na formalização do acordo, uma das partes futuramente abusar do egoísmo, agindo por oportunismo, tentar anular o negócio firmado perante o Judiciário, sob a alegação de que teria sido vítima de lesão, coação ou onerosidade excessiva, poderá sucumbir na referida tentativa por ofensa à boa-fé objetiva e, ainda, acabará por macular a sua própria reputação.
Na lição do jurista italiano Antônio Fici, o agente econômico deve observar os custos existentes antes de tentar a modificação de circunstâncias. Entre os custos futuros de uma atual conduta oportunista deve ser compreendida não apenas, obviamente, o custo derivado da interrupção da relação contratual e, portanto, da perda dos eventuais investimentos específicos, mas também os custos futuros derivados da perda de reputação nos confrontos do parceiro vítima do abuso, como naqueles de outros eventuais parceiros de negócios4.
Sendo assim, toda tentativa de anular os acordos futuramente deve ser analisada à luz da boa-fé. Sobre o tema Rodrigo Xavier Leonardo ensina-nos que o comportamento leal, honesto e transparente das partes antes, durante e depois do acordo de vontades (art. 422 do Código Civil) integra a função social do contrato, conforme preconizam inúmeros precedentes dos Tribunais brasileiros5.
O cuidado técnico-jurídico durante a formalização dos acordos pode ser extraordinariamente vantajoso por tudo o que aqui se tratou, vindo a reduzir os riscos de invalidação futura dos negócios firmados durante a Pandemia da doença Covid-19.
Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II-TorVergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e UFAM).
1 CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Porto Alegre: Fabris, 1988.
2 Revista SÍNTESE Direito Imobiliário Ano VIII – Nº 44 – Mar-Abr 2018.
3 NORONHA, João Otavio. A contribuição da reforma do CPC para resolução de conflitos. Seminário Conciliação e Mediação: Aspectos Jurídicos, Econômicos e Sociais, Magaratiba: AMAERJ, p. 78, 2013.
4 FICI, Antônio. Il contrato incompleto. Torino: G. Giappichelli, 2005. p. 99.
5 LEONARDO, Rodrigo Xavier. A função social dos contratos: ponderações após o primeiro biênio de vigência do Código Civil. In: CANEZIN, Claude. Arte jurídica. v.II. Curitiba: Juruá, 2005.
Alan Hial Pellizzari é advogado, pós-graduado em Direito Ecônomico pela FDRP/USP.
Arthur Mendes Lobo é professor de Direito Civil, e doutor em Direito pela PUC-SP.
FONTE: Revista Consultor Jurídico, 24 de abril de 2020, 9h40